Prezadas e prezados,
Antes de expor minhas contribuições para o Projeto de Lei No. 757, gostaria de discorrer algumas ideias sobre cultura e políticas culturais no âmbito do Cultura Viva ou, sendo mais rigoroso, sobre minha visão e minhas interpretações sobre o conceito de cultura, políticas culturais e sobre esse Programa prestes a se tornar política de Estado.
Vale salientar logo de partida que o Programa Cultura Viva e a futura lei representam no mínimo uma ruptura, uma quebra de paradigma em políticas governamentais culturais em relação ao que se fazia em políticas culturais até o início dos anos 2000. No entanto, ouso dizer que o Programa Cultura Viva não foi tão radical quanto poderia ser e a lei corre esse mesmo risco. Percebam, não há uma contradição entre as duas sentenças anteriores. Reafirmo a viragem política que se instala no lidar com a cultura e reafirmo que essa viragem poderia e ainda pode ser mais profunda.
O deslocamento que o Programa Cultura Viva e os programas desenvolvidos na antiga Secretaria da Identidade e Diversidade do Ministério da Cultura realizaram em termos da compreensão e implementação da política cultural é um acontecimento histórico. Dois elementos foram fundamentais para a estruturação desses programas, que hoje se encontram fundidos no âmbito do Ministério da Cultura na Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural. O primeiro, uma compreensão antropológica de cultura e o segundo, uma decisão política pela afirmação da diversidade e priorização de circuitos, vivências, experimentações e “identidades” culturais não valorizadas, invisibilizadas, desrespeitadas e mesmo violentadas historicamente no sentido simbólico e real do termo violência.
No âmbito dessa compreensão antropológica da cultura cito as contribuições de Geertz e Sahlins como valiosas ferramentas conceituais na busca por um rigor a cerca do conceito de cultura e para o exercício de se construir e operar políticas culturais.
Inicialmente chamo atenção para o sentido semiótico que Geertz confere ao conceito de Cultura no seu livro “A Interpretação das Culturas” e, por consequência, o direcionamento interpretativo da ciência antropológica, cuja busca seria por significados e suas relações e hierarquias entre si, e não por leis que estabelecem modelos de interpretação pré formados que são utilizados de modo servil, talvez ingenuamente, por olhos obedientes e bem adestrados nas artes de agrupar, classificar, definir padrões e etc. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado às teias de significado que ele mesmo teceu, Geertz assevera que a cultura é essa teia e a antropologia através de uma ação etnográfica densa a ferramenta para a interpretação desses significados.
Gostaria também de citar Sahlins quando logo na introdução do seu livro “Ilhas de Histórias” ele afirma que “A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática”. Nesses termos é que Sahlins afirmará que a cultura é reproduzida e alterada historicamente na ação e que por meio dessa ação histórica se pode inclusive produzir alterações estruturais numa da sociedade.
No âmbito da decisão política, por uma política cultural de afirmação da diversidade, das identidades e da cidadania, surge um germe da mudança nos processos implementados inicialmente pelas antigas SCC e SID em parceria com a sociedade civil organizada. Um germe solitário, diga-se de passagem, dentro do aparato do Ministério da Cultura e dentro, ousaria dizer, de toda a estrutura e programas federais da era Lula/Dilma.
O germe de mudança presente em um Programa Bolsa Família não tem um centésimo da virulência, por exemplo, que o, potencialmente, presente no Programa Cultura Viva ou nas ações voltadas a identidade e diversidade, pois enquanto o primeiro trabalha basicamente a dimensão material por meio de transferência de renda suficiente para garantir a reprodução social e cultural, o segundo trabalha com a dimensão do pensamento e, por que não dizer, do sentimento por meio de mecanismos de apropriação, elaboração, e produção cultural ora trazendo a vista o escondido, o desconhecido, o oprimido, o violentado, ora criando o novo, o outro.
No entanto, como disse no início desse despretensioso escrito, para que o Programa Cultura Viva e a Lei Cultura Viva se constituam como ferramentas radicais de afirmação democrática e cidadã é preciso que estas sejam direcionadas ao fortalecimento efetivo das identidades, mas também sem contrassenso ou paradoxo, ao fortalecimento das diversidades e, como cruzamento desses dois conceitos, ao desenvolvimento de aparatos legais e programáticos facilitadores da invenção, da reinvenção, de processos de afirmação ou hibridação identitária. Política cultural direcionada a promoção de mudanças, mudanças de olhar, mudanças de interpretação, mudanças para a construção de outros significados que ajudem a construir outros valores e outras bases de relacionamento afirmativas e respeitosas. Política cultural para a afirmação e promoção de direitos constituídos e como campo de fermentação para a maturação de outros direitos negados, não constituídos.
Entendo que o Cultura Viva, como política cultural do Estado brasileiro, só será radical se ultrapassar a visão ordinária de cultura vinculada a arte, expressões artísticas, linguagens, tradição, sem, no entanto, isso representar desvalorização ou desinvestimento nessas áreas. Apenas, repito que o conceito cultura não pode ser reduzido a este nível. A redução do conceito de cultura empobrece inelutavelmente a potencialidade da política cultural como política de transformação e como política promotora de autonomia e protagonismo de pessoas e coletivos.
Nesse contexto é que retomo a importância de termos mais atenção às mencionadas dimensões antropológicas e políticas da cultura. O sentido do antropológico nessa política cultural não pode ficar circunscrito ao dito “resgate” de uma dada tradição ou expressão cultural ou sentido de ancestralidade; ou a valorização e promoção dos “mestres da cultura” ou dos griôs; ou apenas na massagem estimulante aos “pontos de cultura” na perspectiva dodo-in antropológico, termo popularizado pelo ex-ministro Gilberto Gil.
O sentido do antropológico precisa avançar na direção da identificação de contextos culturais que ferem os princípios dos direitos humanos, de cidadania e de democracia e na criação de ações práticas (Sahlins) para a ultrapassagem desses referidos contextos culturais nos quais populações inteiras são desrespeitadas e violentadas provocando, eliciando mudanças. De modo mais direto: quando falamos em violência contra a mulher, machismo, homofobia, exploração sexual, preconceito geracional, violência contra idosos, invisibilidade das pessoas com deficiência, racismo ou mesmo corrupção, dentre outros fenômenos, estamos falando de cultura, estamos falando de significados construídos na cultura e na história que criam e fomentam a permanência de relações de aviltamento, abjeção, opressão e aniquilamento vitimando mulheres, sujeitos LGBTT, negros e negras, crianças, adolescentes, jovens, idosos e idosas, pobres, pessoas com deficiência, dentre outros.
Entendendo política pública como conjunto sistematizado de programas e ações, constituídos legalmente e direcionada a garantia e promoção do bem comum, da liberdade, do desenvolvimento individual e social de todos e todas as cidadãs brasileiras; entendendo que os grandes marcadores de diferença que sustentam de modo simbólico e concreto as desigualdades, violências e violações de direito são produzidos e reproduzidos culturalmente; e entendendo que o campo da cultura e das políticas culturais constituem os campos privilegiados para a construção de novos marcadores civilizatórios geradores e promotores da diversidade, da igualdade, do respeito e afirmação do outro e de relações públicas e privadas mais saudáveis e prazerosas; considero que a Lei Cultura Viva precisa se comprometer de modo claro com essa perspectiva antropológica e política radical.
Para finalizar, a Lei Cultura Viva precisa ainda dialogar com os direitos humanos aclamados em conferências, declarações e protocolos internacionais e nacionais. Nesse sentido não é admissível que a política pública implementada por meio da Lei Cultura Viva subscreva, chancele, financie ou apoio qualquer iniciativa ou organismo cultural que em suas práticas, processos e produtos agridam os direitos humanos.
Um programa ou uma lei que faça o contrário, que simplesmente desconsidere ou que aborde estas questões apenas como tangenciais, somente para constar, sem dar-lhes um encaminhamento concreto e afirmativo não pode ser denominada Cultura Viva.
Um abraço,
Marcos Rocha
GT / Gênero
FONTE: PONTOSDECULTURA.ORG.BR - Postado em 13/06/13
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